Advogado vê inconstitucionalidade em bloqueio de CPFs do Bolsa Família em bets
Ao tentar impedir que recursos do Bolsa Família sejam usados em apostas, o governo federal criou uma regra que pode abrir novos problemas.
O bloqueio de CPFs de beneficiários em plataformas de apostas é visto pelo advogado Udo Seckelmann como uma medida de difícil execução, que ultrapassa o que o STF determinou e pode ferir princípios constitucionais.
Publicada no Diário Oficial da União na última semana, a norma obriga as operadoras a encerrar cadastros e devolver valores depositados por usuários que recebam recursos do Bolsa Família ou do BPC (Benefício de Prestação Continuada).
Segundo o governo, o objetivo é evitar o uso de verbas públicas destinadas à subsistência em atividades de jogo.
Para Seckelmann, especialista em direito desportivo, direito dos jogos, arbitragem e solução de conflitos, iGaming e cripto, a intenção do governo é legítima, mas o método é questionável.

“Trata-se de uma forma de paternalismo estatal, que restringe direitos e liberdades individuais com base em condição econômica”
Ele avalia que o bloqueio automático de beneficiários extrapola o que o Supremo Tribunal Federal (STF) havia determinado, ao impor restrições com base em condição econômica.
Bloqueios podem ser judicializados
Essa estratégia, segundo o especialista, pode violar princípios como liberdade econômica.
Por isso, o advogado vê alto potencial de judicialização, tanto por meio de ações diretas de inconstitucionalidade quanto por ações civis públicas e liminares individuais.

“O bloqueio pode ser visto como violador dos princípios da isonomia, liberdade econômica e dignidade da pessoa humana, ao restringir a autonomia financeira de um grupo específico de cidadãos”
Ele aponta que, além de polêmica do ponto de vista jurídico, a medida tende a ser ineficaz na prática. “O bloqueio por CPF é uma medida de baixa efetividade prática. Embora impeça o cadastro direto de beneficiários em operadores licenciados, ele não alcança apostas feitas por meio de contas de terceiros ou em sites offshore", destacou o entrevistado pelo Aposta Legal.

“Na prática, quem quiser apostar encontrará caminhos fora do sistema regulado”
Medida do governo pode impulsionar mercado ilegal
Segundo Seckelmann, o bloqueio pode gerar o efeito contrário ao desejado: a migração de apostadores para o mercado ilegal. Esse movimento, conhecido como “descanalização”, já foi observado em outros mercados regulados e ocorre quando regras excessivamente restritivas afastam o público das plataformas licenciadas.

“Ao excluir determinados grupos do mercado regulado, o Estado corre o risco de empurrá-los para operadores não licenciados, que não seguem padrões de integridade, segurança e proteção ao consumido”
Ele defende que o governo deveria monitorar o impacto da decisão e reforçar o combate ao jogo ilegal, para não comprometer o processo de canalização que a nova regulação busca consolidar.
“O governo precisa acompanhar o impacto dessa medida e reforçar o combate ao jogo ilegal, sob pena de enfraquecer o próprio processo de canalização que a nova regulação busca consolidar", avaliou.
Seckelmann também ressalta que não há precedentes internacionais de bloqueios baseados em renda ou condição social.
Em mercados maduros, como Reino Unido e União Europeia, as restrições são individualizadas e baseadas em risco: operadores devem monitorar comportamento de jogo e capacidade financeira, mas não podem excluir grupos sociais inteiros.

“A lição desses países é clara: medidas paternalistas raramente funcionam e tendem a gerar efeitos colaterais, como migração para o mercado ilegal. O foco deve ser em prevenção e educação, não em proibições automáticas”
Entenda os bloqueios
A Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda criou uma base de dados com beneficiários do Bolsa Família e do BPC, que deve ser consultada pelas operadoras de apostas no momento do cadastro, login e em verificações periódicas.
A checagem é feita por meio do CPF no Sistema de Gestão de Apostas (Sigap) — ferramenta responsável por regular e fiscalizar o setor.
As empresas terão até três dias para encerrar contas e devolver valores após a identificação de beneficiários. Além disso, deverão realizar consultas a cada 15 dias para detectar novos cadastros.
O Ministério da Fazenda afirma que a medida não suspende pagamentos dos benefícios sociais. A responsabilidade de restringir o acesso recai sobre as operadoras, que devem garantir que nenhum recurso do Bolsa Família ou BPC seja usado em apostas.
O novo módulo do Sigap, desenvolvido pelo Serpro, faz parte do projeto “Módulo de Impedidos” e atende a uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e a recomendações do Tribunal de Contas da União (TCU).
Segundo o Banco Central, beneficiários do Bolsa Família movimentaram mais de R$ 3 bilhões em sites de apostas via Pix em 2024, o que motivou o governo a acelerar a regulamentação do setor.