LOTERJ vs. SPA: Os limites territoriais de competência no mercado de apostas de quota fixa
Artigo escrito por Udo Seckelmann¹, advogado especialista em Direito Desportivo Internacional e Pedro Heitor², estudante de direito atuante nas áreas de Sportainment, Cryptolaw e inovação, ambos da Bichara e Motta Advogados
Em diversas oportunidades, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi convocado a examinar a constitucionalidade de legislações estaduais relacionadas ao serviço público de loterias.
O entendimento consolidado pelo STF estabelece que, embora a União Federal detenha a competência exclusiva para legislar sobre sistemas de consórcios e sorteios, incluindo as modalidades lotéricas, como são juridicamente definidas as apostas de quota fixa, tal prerrogativa não impede que os Estados e o Distrito Federal possuam competência material para explorar e regular essas atividades.
Neste contexto, ao julgar conjuntamente as ações de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, (ADPF) 492/RJ, ADPF 493/DF e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4986/MT, o STF concluiu que os art. 1º e 32, caput e § 1º, do Decreto-Lei nº 204/1967, os quais atribuíam à União a exclusividade na prestação de serviços lotéricos, não foram recepcionados pela Constituição Federal de 1988 (CF), visto que tais dispositivos contrariam o art. 25, § 1º, da CF, limitando indevidamente a competência subsidiária dos Estados na prestação de serviços públicos não expressa e exclusivamente atribuídos à União Federal.
O STF, ao julgar ações sobre loterias, decidiu que a exclusividade da União na prestação desses serviços não foi recepcionada pela Constituição de 1988, garantindo competência subsidiária aos Estados.
Em consonância com o entendimento do STF, o Estado do Rio de Janeiro promulgou o Decreto nº 48.806/2023, estabelecendo as diretrizes e normas preliminares para a regulamentação, pela Loterias do Estado do Rio de Janeiro (LOTERJ), da exploração comercial das apostas de quota fixa no território estadual por meio de um modelo de autorização aos agentes privados, tendo início com a expedição do Edital de Credenciamento 01/2023 em 25 de abril de 2023.
O Edital de Credenciamento 01/2023, em síntese, estabeleceu as condições e requisitos para a exploração da modalidade lotérica de apostas de quota fixa em sua forma virtual, no Estado do Rio de Janeiro, mediante o pagamento de outorga fixada no valor de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais), com a adição de uma contribuição mensal correspondente a 5% do GGR (Gross Gaming Revenue).
“O edital também exige que operadores usem geoblocking para permitir apostas apenas de usuários dentro do Rio de Janeiro.”
Logo após, em 26 de julho de 2023, a LOTERJ retificou o Edital de Credenciamento 01/2023 para ajustar determinados itens regulamentares, ocasião na qual determinou que:
- "o sistema deverá possuir capacidade de controlar e confirmar que o apostador declara e concorda que a efetivação das apostas online sempre será considerada realizada no território do Estado do Rio de Janeiro, para todos os efeitos e finalidades, inclusive fiscais e legais, independentemente da geolocalização do IP ou do dispositivo de origem da aposta.” (Grifou-se)
Como consequência dessa interpretação, a LOTERJ autorizou os operadores credenciados a aceitarem apostas de usuários localizados além dos limites territoriais do Estado do Rio de Janeiro, condicionada à implementação deste aceite pelo apostador, o que gerou um embate regulamentar com a Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA), órgão regulador federal do mercado de apostas.
A questão central, a ser explorada adiante com maior profundidade, foca na interpretação jurídica pela LOTERJ de que apostas online sejam consideradas realizadas no território do Estado do Rio de Janeiro para todas as finalidades legais e fiscais, desconsiderando a localização do usuário, em aparente desacordo com o caput e o § 4º do art. 35-A da Lei nº 13.756/2018, modificado pela Lei nº 14.790/2023 (Lei das Apostas de Quota Fixa), cuja previsão dispõe que:
- “Art. 35-A. Os Estados e o Distrito Federal são autorizados a explorar, no âmbito de seus territórios, apenas as modalidades lotéricas previstas na legislação federal. [...]
- § 4º A comercialização e a publicidade de loteria pelos Estados ou pelo Distrito Federal realizadas em meio físico, eletrônico ou virtual serão restritas às pessoas fisicamente localizadas nos limites de suas circunscrições ou àquelas domiciliadas na sua territorialidade.” [...] (Grifou-se)"
A preocupação da SPA decorre principalmente do possível enfraquecimento do que talvez seja a única vantagem competitiva da autorização federal, isto é, a permissão para a comercialização e promoção de apostas em todo o território nacional.
Devido à retificação da LOTERJ, tal vantagem se vê ameaçada pelas condições mais favoráveis das autorizações estaduais. Sob o ponto de vista de eficiência econômica, a autorização federal implica custos significativamente mais altos, tanto em termos de outorga quanto de tributação sobre o GGR.
Para ilustrar: enquanto a outorga exigida pela SPA é de R$ 30.000.000,00, a LOTERJ cobra apenas R$ 5.000.000,00.
Em termos de tributação sobre o GGR, a Lei das Apostas de Quota Fixa estabelece uma taxa anual de 12% para operadores credenciados em âmbito federal, em contraste com a taxa mensal de 5% imposta pela LOTERJ. Desta forma, a autorização estadual torna-se significativamente mais atraente.
Caso outros Estados adotem a interpretação da LOTERJ, a vantagem competitiva da autorização federal será comprometida, afetando negativamente a extensa regulação estabelecida pela SPA e as expectativas de arrecadação da União Federal.
Diante deste empecilho regulatório, em 21 de março de 2024, o regulador federal enviou à LOTERJ o Ofício SEI nº 18400/2024/MF, exigindo que a autarquia cessasse a permissão para que operadores credenciados aceitassem apostas de usuários localizados fora dos limites territoriais do Estado do Rio de Janeiro, fundamentando-se no princípio da territorialidade da exploração lotérica, previsto no § 1º do art. 2º do Decreto-Lei nº 6.259/44, bem como no aludido dispositivo da Lei nº 13.756/2018, que busca limitar a atuação dos entes estaduais ao âmbito de seus territórios.
Em resposta, a LOTERJ esclareceu que a regulamentação de apostas esportivas e jogos online no Estado do Rio de Janeiro não detém qualquer estipulação contrária à legislação federal, haja vista que a regulação “no âmbito do Estado do Rio de Janeiro” apenas versa que, em se tratando de serviços em meio virtual, a prestação do serviço lotérico observa os termos do art. 3º da Lei Complementar nº 116/2003, segundo o qual:
“O serviço considera-se prestado, e o imposto, devido, no local do estabelecimento prestador, no local do domicílio do prestador, exceto nas hipóteses previstas nos incisos I a XXV, quando o imposto será devido no local.”
Em linhas gerais, o argumento baseia-se no entendimento de que a loteria possui natureza de serviço público, conforme definido pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 6.259/44, sendo, portanto, aplicável o supracitado dispositivo da Lei Complementar nº 116/2003.
Adicionalmente, a LOTERJ citou o § 8º do art. 35-A da Lei das Apostas de Quota Fixa, que estabelece:
- “Art. 35-A. [...] § 8º São preservadas e confirmadas em seus próprios termos todas as concessões, permissões, autorizações ou explorações diretas promovidas pelos Estados e pelo Distrito Federal a partir de procedimentos autorizativos iniciados antes da publicação da Medida Provisória nº 1.182,de 24 de julho de 2023, assim entendidos aqueles cujo primeiro edital ou chamamento público correspondente tenha sido publicado em data anterior à edição da referida Medida Provisória, independentemente da data da efetiva conclusão ou expedição da concessão, permissão ou autorização, respeitados o direito adquirido e os atos jurídicos perfeitos”. (Grifou-se)
Segundo a autarquia estadual, esse dispositivo serve como norma clara de aplicação da lei no tempo, preservando todos os efeitos e atos jurídicos estabelecidos antes das alterações introduzidas pelos parágrafos do art. 35-A, incluindo o § 4º, que modificou os conceitos anteriores de territorialidade, aplicáveis também a meios eletrônicos ou virtuais.
Assim, o cerne deste conflito interpretativo parece residir na questão de se o ato jurídico, representado pela subsequente retificação do Edital de Credenciamento 01/2023 pela LOTERJ, configura-se como “perfeito”.
Em outras palavras, trata-se de um ato já consumado e concluído conforme a lei vigente no momento de sua execução (tempus regit actum), uma vez que cumpriu todos os requisitos formais exigidos para produzir a plenitude de seus efeitos, tornando-se, assim, completo e aperfeiçoado.
Conforme estabelecido pelo art. 29 da Lei nº 13.756/18, a loteria de apostas de quota fixa foi expressamente definida como um “serviço público”, o qual não deve ser confundido com a atividade econômica exercida pelo Estado, de forma que as repercussões jurídicas derivadas da natureza jurídica deste serviço, incluindo a territorialidade da pessoa jurídica de direito público interno que o criou e o executa, seja diretamente ou por meio de delegação, colocam em questão a validade deste ato jurídico.
À medida que o conflito evolui, é provável que a controvérsia entre o regulador estadual e federal seja levada à judicialização, dada a relevância dos potenciais impactos sobre os direitos adquiridos por operadores credenciados a nível estadual e os eventuais danos aos operadores que buscam autorização em âmbito federal, além das expectativas de arrecadação da União Federal.
Embora ainda não tenha ocorrido um confronto direto entre LOTERJ e SPA na esfera judicial, foi ajuizada a ação popular contra a LOTERJ questionando a alteração no princípio da territorialidade realizada pela autarquia, oportunidade na qual a Loteria do Estado do Paraná (LOTTOPAR) requereu seu ingresso no polo ativo desta ação, alegando que a LOTERJ cometeu um “ato antifederativo” ao criar uma “ficção jurídica de territorialidade”.
A judicialização pode induzir a uma revisão dos termos do Edital pelo Judiciário, com o objetivo de esclarecer e definir os limites da competência material dos Estados em face das normativas federais, o que não é apenas capaz de prejudicar negativamente a posição competitiva da autorização federal, como também estabelecer um precedente significativo sobre a interpretação das leis e atos normativos que regulam a exploração das apostas de quota fixa em meio virtual.
Sendo assim, a resolução deste imbróglio é essencial para garantir a estabilidade e a previsibilidade do mercado de apostas no Brasil, haja vista que impactará diretamente na segurança jurídica e na viabilidade econômica das operações regidas por regimes de autorização distintos.
Como nós avaliamos este artigo
- Fontes